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Ó! divino Esculápio, olhai por nós! :)

Atualizado: 29 de set. de 2020


Por Marcio Bontempo

Médico sanitarista

Deus da medicina e da saúde para os gregos antigos, Esculápio teve duas filhas: Panacéia e Higéia. A primeira tinha como princípio desenvolver e difundir recursos para tratar as doenças e a segunda, Higéia, ensinar os humanos a evitar as enfermidades. Diz-se que elas viviam constantemente em conflito, para martírio do pai, que tentava a todo custo estabelecer a harmonia entre elas. De Higéia surgiu a palavra higiene e de Panacéia, a própria palavra panacéia, que tem o significado de remédio para todos os males. Curiosamente, é dos nomes e das características individuais das filhas de Esculápio, a origem das duas grandes correntes da medicina, uma voltada exclusivamente para a terapêutica (tratamento medicamentoso) e outra, para a prevenção, educação de hábitos, recuperação, manutenção e cuidados com a saúde (higiene).


Parece então que as medicina tradicionais antigas, até a época de Hipócrates, seguiram mais a escola de Higéia e menos a de Panacéia (restrita apenas a emergências e casos de acidentes, agravos, etc.), mas Galeno, médico grego do imperador romano Marco Aurélio, nítido devoto de Panacéia, divergindo do mestre Hipócrates, desenvolveu uma profusa farmacopéia sintomática, visando atender a nobreza romana nos seus males agudos (derivados dos excessos e libações), sem necessidade de mudança dos hábitos insalubres.


Diz-se que nos momentos em que Esculápio conseguiu um pouco de paz entre suas filhas, nasceram as grandes doutrinas médicas do passado, como o Aiurveda na Índia, a Medicina Chinesa, a Medicina árabe, egípcia, etc.


Quando foi criada a A Organização Mundial de Saúde, a princípio, Panacéia foi certamente a madrinha da instituição, fortemente centrada na ideia do medicamento como solução para todos os males da humanidade. Mas não resolveram. Foram as melhorias sanitárias e as ações fundamentadas em práticas de saúde culturalmente enraizadas que realizaram o milagre. Então a Organização Mundial de Saúde, desde Alma-Ata em 1978 (quando se definiu o fundamento da Atenção Primária à Saúde e a importância das medicinas tradicionais), colocou Higéia no pedestal das políticas internacionais de saúde.


Porém, tanto as ações de saúde quando a prática médica, sejam públicas ou privadas, seguiram obedecendo em grande parte à irmã ambiciosa de Higéia. E a briga continuou. A indústria farmacêutica cresceu e, além da sua utilidade em descobrir novas drogas para salvar vidas, desenvolveu um forte sistema de lobbies nos governos. Panacéia ajudou. E fez isso principalmente através do ensino médico, com forte foco na terapêutica medicamentosa.


No Brasil, onde Panacéia tradicionalmente reinou absoluta, Higéia começou a se firmar com os progressivos movimentos que desenvolveram o fundamento da Atenção Primária do nascimento do Sistema Único de Saúde. Higéia insuflava na mente dos sanitaristas, principalmente no Brasil, o ideal da Reforma Sanitária e a postura corporativa e isolacionista de cada política pública como nociva. Mas Panacéia gosta de hospitais, de alta complexidade, de UTIs, de super especialistas, de médicos, de tomógrafos. Higéia ama agentes comunitários de saúde, equipes multidisciplinares, medicina natural, Terapia Comunitária Integrativa e médicos de família. Mas problemas e desafios persistem impedindo os avanços de Higéia, Por exemplo, a Estratégia de Saúde da Família – cerne da Atenção Básica-, apesar das conquistas nos últimos anos, ainda enfrenta muitos entraves. Se Panacéia pudesse cuidar mais das emergências, da medicina tecnológica, da média e alta complexidade, etc. e Higéia da promoção e da educação em saúde, teríamos o fomento do bem-estar e da qualidade de vida na base da sociedade, com isso a diminuição da procura dos serviços e a consequente redução dos enormes gastos públicos com a doença. Precisamos de medicamentos, mas o que certamente não precisamos é de um oneroso modelo de assistência demasiadamente centrado neles.


Atualmente Higéia ganha forças na maioria dos demais países, mas aqui seu avanço empacou. Então parece estar na hora de Esculápio olhar outra vez para o Brasil. Entonemos, pois, preces, odes e súplicas ao deus!. Esculápio! Como um humilde servo mortal suplico: ordene que Panacéia permita mais espaço para Higéia neste sofrido país! Esculápio olhe essas filas nos hospitais! Olhe a falta de insumos! Olhe essa gente desassistida esperando longamente por exames e cirurgias! Olhe a falta de uma gestão inteligente e de capacitação adequada para gestores em saúde, Esculápio! Olhe os lobbies de Panacéia no Congresso, Esculápio! Olhe os desvios de recursos do SUS, Esculápio! Incute compromisso social, humanismo e consciência cívica nas almas dos servidores, Esculápio! Com todo o respeito, lance seus sagrados eflúvios sobre a saúde pública no Brasil! Esculápio, já que você nos inspirou na criação do nosso sistema de saúde, ó divino senhor, salve então o SUS, pelo amor de Zeus!


Assina: Marcio Bontempo, seu humilde devoto e servo, discípulo de Hipócrates


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